O sistema MitraClip® foi recentemente aprovado para uso clínico no Brasil para o tratamento percutâneo da insuficiência valvar mitral. Esse dispositivo se baseia na cirurgia de Alfieri, criando um orifício duplo pela união central das duas cúspides da valva mitral. Descrevemos aqui os dois primeiros procedimentos realizados em nosso meio utilizando esse dispositivo. Tratam-se de duas pacientes do sexo feminino, consideradas de alto risco cirúrgico pela idade avançada e pela presença de comorbidades, portadoras de insuficiência mitral degenerativa por prolapso/flail associado à rotura de cordoalhas. Nos dois casos, obteve-se redução expressiva da intensidade da regurgitação mitral com a utilização do MitraClip®, demonstrando o grande potencial dessa tecnologia inovadora para o tratamento percutâneo da insuficiência valvar mitral.
The MitraClipTM system has been recently approved for clinical use in Brazil for percutaneous treatment of mitral valve regurgitation. This device is based on the Alfieri surgical procedure, creating a double orifice by bringing together the central segments of the two mitral valve cusps. This report describes the first two procedures performed in Brazil using this device. Two female patients considered to be at high surgical risk due to advanced age and presence of comorbidities were treated, with degenerative mitral regurgitation due to prolapse/flail, associated with chordae tendineae rupture. In both cases, significant mitral regurgitation intensity reduction was obtained using the MitraClipTM, demonstrating the great potential of this innovative technology for the percutaneous treatment of mitral valve regurgitation.
A insuficiência valvar mitral é uma das doenças valvares adquiridas mais comuns, com prevalência de aproximadamente 7 a 10% na população com idade superior a 75 anos.1,2 O tratamento da insuficiência mitral tradicionalmente se baseia no manuseio clínico medicamentoso, na ressincronização e, principalmente, na cirurgia para reparo ou troca valvar por prótese.3 No entanto, apesar da recomendação de diretrizes, aproximadamente 50% dos pacientes não são tratados cirurgicamente, por apresentarem alto risco em virtude de idade avançada, disfunção ventricular esquerda ou presença de comorbidades.4 Por esse motivo, mais recentemente, o foco das pesquisas nessa área se desviou para o desenvolvimento de novos dispositivos percutâneos, menos invasivos, para o tratamento da insuficiência valvar mitral. Dentre estes, o sistema MitraClip® (Abbott Vascular, Redwood City, EUA) (fig. 1) é um dos mais promissores. Esse dispositivo foi aprovado para uso clínico na Europa em março de 2008 e, nos Estados Unidos, em outubro de 2013. Até a presente data, mais de 25 mil pacientes já se beneficiaram dessa nova modalidade de tratamento, empregada predominantemente naqueles de alto risco cirúrgico. No Brasil, o MitraClip® foi aprovado para uso no final de 2014. Descrevemos aqui os dois primeiros procedimentos realizados no Brasil para tratamento percutâneo da insuficiência valvar mitral utilizando o dispositivo MitraClip®.
Dispositivo MitraClip® (esquerda) e seu sistema de entrega (direita). Cada braço (A) do clipe tem 4mm de largura e 8mm de comprimento. Os grampos (B) são utilizados para prender os folhetos da valva mitral nos braços do clipe. O cateter direcionável tem 24 F e conta com manobradores (C e E) para orientar e posicionar corretamente o clipe. O estabilizador (D) é utilizado para apoiar o sistema de entrega do MitraClip®.
Paciente do sexo feminino, 97 anos, foi admitida no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo (SP), por quadro súbito de insuficiência cardíaca congestiva classe funcional IV. As avaliações por ecocardiograma transtorácico (ETT) e, posteriormente, por ecocardiograma transesofágico (ETE) bidimensional demonstraram insuficiência valvar mitral importante (4+/4+), em decorrência de prolapso da cúspide posterior da valva mitral (segmentos P2 e P3), associada à rotura de cordas tendíneas (segmento P2), ocasionando ampla falha de coaptação (fig. 2A a 2C). O átrio esquerdo media 48mm, e a pressão sistólica em artéria pulmonar foi estimada em 53mmHg. A função ventricular esquerda estimada pela fração de ejeção era normal. A despeito da internação hospitalar prolongada (45 dias) para otimização do tratamento medicamentoso, a paciente apresentou repetidos episódios de edema agudo pulmonar, necessitando de cuidados intensivos intermitentemente e caracterizando a refratariedade ao tratamento. Em virtude da idade avançada e de comorbidades, como insuficiência renal, o risco cirúrgico foi considerado proibitivo pela equipe médica. As estimativas de mortalidade cirúrgica pelo EuroSCORE logístico e pelo Society of Thoracic Surgeons (STS) foram 21,1 e 18,4%, respectivamente. Por esse motivo, indicou-se a valvoplastia mitral percutânea transeptal com o dispositivo MitraClip®.
Ecocardiograma transesofágico pré (A, B e C) e pós-procedimento (D, E e F). Nota-se falha de coaptação entre as cúspides (A, seta), devido a prolapso dos segmentos P2 e P3, e rotura de cordas de P2 (C, seta), ocasionando refluxo anterolateral excêntrico (B). Após implante de MitraClip® na borda medial de P2 (D e F), redução significativa do refluxo (E) e formação do duplo orifício mitral, com imagem característica em “8” ao ecocardiograma tridimensional (F).
O procedimento foi realizado em sala híbrida no dia 6 de janeiro de 2015, com a paciente sob anestesia geral, e guiado por ETE tridimensional. Administrou-se heparina na dose de 10.000 UI, com o objetivo de atingir tempo de coagulação ativado entre 300 e 350 segundos. Realizou-se a punção da veia femoral direita seguida de punção transeptal, para obtenção de acesso ao átrio esquerdo. Introduziu-se o cateter 24 F do sistema MitraClip® no interior do átrio esquerdo, direcionando-o para a valva mitral, com o auxílio da fluoroscopia e ETE tridimensional. Diversas imagens do ETE bi e tridimensional foram utilizadas para conseguir o posicionamento adequado do clipe, perpendicular à comissura mitral e sobre o jato regurgitante. O clipe foi, então, avançado para o interior do ventrículo esquerdo, com seus braços abertos. Pequenos ajustes adicionais no posicionamento do clipe foram guiados por ETE bi e tridimensional.
Obtido o posicionamento ideal, o clipe foi fechado, capturando-se porções equivalentes das cúspides da valva mitral (fig. 2D). Detectou-se redução imediata da intensidade da regurgitação mitral de 4+/4+ para 2+/4+, observando-se a imagem característica de duplo orifício mitral (fig. 2E e 2F). O gradiente médio de pressão transvalvar foi de 4mmHg.
O clipe foi liberado do sistema de entrega. O cateter foi removido e obteve-se hemostasia com um único dispositivo Perclose ProGlide® (Abbott Vascular, Redwood City, EUA) aplicado no sítio de punção na veia femoral. O tempo de procedimento (clip time) foi de 95 minutos. Utilizaram-se 50mL de contraste iodado para realização da ventriculografia esquerda basal, e, após o procedimento, a paciente foi extubada e encaminhada à unidade de terapia intensiva. Evoluiu com piora da insuficiência renal, necessitando de hemodiálise. Houve melhora significativa dos sintomas de insuficiência cardíaca, e os ETT realizados após 1 e 4 dias do procedimento revelaram insuficiência mitral apenas discreta (1+/4+). No quarto dia após a intervenção, quando evoluía com melhora significativa dos sintomas de insuficiência cardíaca, subitamente apresentou quadro de choque cardiogênico e insuficiência respiratória, em decorrência de embolia pulmonar maciça, evoluindo para óbito.
Caso 2Paciente do sexo feminino, 93 anos, hipertensa, diabética, obesa e portadora de hipotireoidismo, foi admitida em caráter de urgência no Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro (RJ), por quadro de insuficiência cardíaca congestiva progressiva até classe funcional IV, de início há 45 dias. Na admissão, evidenciou-se fibrilação atrial com tempo de instalação indeterminado.
Desde de 2006, tinha o diagnóstico de insuficiência valvar mitral discreta por prolapso. As avaliações por ETT e, posteriormente, por ETE realizadas durante a internação hospitalar demostraram a presença de insuficiência valvar mitral importante (4+/4+) com efeito Coanda, em decorrência de prolapso de ambas as cúspides, associado à rotura de corda e flail do segmento A2 (fig. 3A a 3C). O átrio esquerdo media 50mm, e a pressão sistólica em artéria pulmonar foi estimada em 50mmHg. A função ventricular esquerda estimada pela fração de ejeção era normal.
Ecocardiograma transesofágico pré (A, B e C) e pós-procedimento (D, E e F). Prolapso de ambas as cúspides associado à rotura de corda e flail do segmento A2 (A e C, seta), gerando refluxo excêntrico posterior importante (B), pelo flail gap de 4mm. Após implante de um clipe (D), redução significativa do refluxo (E) e formação do duplo orifício mitral (F).
Foi submetida a várias tentativas de compensação clínica sem sucesso, apesar do uso de furosemida em infusão contínua, além de inotrópico (milrinone) e vasodilatadores. Evoluiu com anasarca, hiponatremia grave e alcalose metabólica hipocalêmica, sendo indicadas ultrafiltração contínua e ventilação não invasiva. Em virtude da idade avançada e de comorbidades, como insuficiência renal, foi considerada de alto risco cirúrgico pela equipe médica, com mortalidade estimada pelo EuroSCORE logístico e pelo STS de 49,3 e 48%, respectivamente. Por esse motivo, indicou-se a valvoplastia mitral percutânea transeptal com o dispositivo MitraClip®.
O procedimento foi realizado em sala híbrida no dia 16 de janeiro de 2015, com a paciente sob anestesia geral, e guiado por ETE. Empregou-se exatamente a mesma técnica descrita para o caso anterior, utilizando-se um único clipe. Obteve-se redução imediata da intensidade da regurgitação mitral, de 4+/4+ para 2+/4+, criando-se o duplo orifício mitral (fig. 3D a 3F).
O gradiente médio de pressão transvalvar foi de 4mmHg. Após a remoção do cateter, obteve-se hemostasia por compressão manual. O tempo de procedimento (clip time) foi de 70 minutos. Não se utilizou contraste iodado nesse procedimento. A paciente foi extubada e encaminhada à unidade de terapia intensiva. Evoluiu com recuperação lenta, mas progressiva, da diurese espontânea e estabilização das escórias nitrogenadas. Realizou-se desmame de aminas vasoativas, assim como da ultrafiltração dialítica.
O ETT realizado 12 dias após o procedimento revelou a presença de insuficiência mitral discreta (1+/4+). Recebeu alta hospitalar 15 dias após o implante do clipe mitral, deambulando com auxílio e com medicações por via oral: amiodarona, bisoprolol, furosemida, espironolactona, rivaroxabana, pregabalina. No seguimento de 6 meses, apresentava-se em classe funcional II.
DiscussãoO sistema MitraClip® foi recentemente aprovado para uso clínico no Brasil para o tratamento percutâneo da insuficiência valvar mitral funcional ou degenerativa. Esse dispositivo se baseia na cirurgia de Alfieri, que consiste em sutura central das duas cúspides da valva mitral, criando um orifício duplo.5 O estudo clínico randomizado EVEREST II (Endovascular Valve Edge-to-Edge Repair Study) demonstrou a segurança e a eficácia do MitraClip® em casos selecionados, com resultados mantidos até o seguimento de 4 anos.6,7 Nesse estudo, o reparo percutâneo foi menos eficaz para reduzir a intensidade da regurgitação mitral que o tratamento cirúrgico convencional. No entanto, foi, no mínimo, tão seguro quanto a abordagem cirúrgica, com taxas equivalentes de óbito, infarto e acidente vascular cerebral, além de menor necessidade de transfusões sanguíneas. Adicionalmente, o tratamento percutâneo determinou melhora equivalente dos sintomas de insuficiência cardíaca e qualidade de vida.6,7 Por esse motivo, tornou-se uma excelente alternativa para o tratamento da insuficiência valvar mitral em pacientes de alto risco cirúrgico, como nos dois casos aqui relatados, que representam a experiência pioneira em nosso país. Nossos pacientes apresentavam insuficiência mitral degenerativa, por prolapso/flail, associada à rotura de cordoalhas. Nos dois casos, obteve-se redução expressiva da intensidade da regurgitação mitral, com a utilização de apenas um clipe. Os ecocardiogramas de controle realizados nos primeiros dias após a intervenção confirmaram a eficácia do tratamento, com insuficiência mitral residual discreta nos dois pacientes. A primeira paciente faleceu no quarto dia após o procedimento por embolia pulmonar maciça, provavelmente em decorrência da imobilidade no leito hospitalar, a despeito do regime de anticoagulação iniciado 2 dias após a intervenção. Não há, na literatura, relato dessa complicação associada ao emprego do clipe mitral. A segunda paciente apresentou melhora clínica significativa e encontrava-se em classe funcional II no seguimento clínico de 8 meses.
Importante ressaltar que o conhecimento da anatomia valvar mitral e a interação entre o intervencionista e o ecocardiografista são fundamentais para o sucesso do procedimento, uma vez que essa intervenção é guiada, em sua quase totalidade, pelas imagens geradas pelo ETE bi e tridimensional. Não há necessidade de utilizar contraste iodado para o emprego do MitraClip®. As complicações hemorrágicas (tamponamento cardíaco) e embólicas (acidente vascular cerebral), embora raras, podem ocorrer em decorrência da punção transeptal e da manipulação do átrio esquerdo com cateteres calibrosos.8 A checagem periódica dos níveis de anticoagulação (tempo de coagulação ativada alvo entre 300 e 350 segundos) durante o procedimento é imprescindível para prevenir as complicações embólicas.
Embora nos dois casos aqui relatados o MitraClip® tenha sido empregado para o tratamento da insuficiência mitral degenerativa, seu uso para o tratamento da insuficiência mitral funcional é, atualmente, mais frequente.9,10 Dessa forma, o MitraClip® deve ser considerado uma alternativa ao tratamento cirúrgico convencional para casos selecionados com insuficiência mitral degenerativa ou funcional, especialmente quando o risco cirúrgico é elevado, pela idade avançada e pela presença de comorbidades ou disfunção ventricular esquerda importante.11 Algumas condições anatômicas, anteriormente consideradas contraindicações ao procedimento no estudo EVEREST, mais recentemente, com a maior experiência dos operadores, passaram a ser aceitáveis para a abordagem com o Mitraclip®. Permanecem, entretanto, algumas restrições, entre as quais destacam-se: calcificação importante no local alvo para clipagem (borda do folheto); lesão degenerativa causada por endocardite ou doença reumática, em virtude da intensa deformidade e lesão dos folhetos; folheto posterior com comprimento ≤ 7mm; falha de coaptação (coaptation gap) com espaço > 5mm entre as bordas dos folhetos; desnível ≥ 10mm entre as bordas dos folhetos anterior e posterior causado por flail (flail gap).
Em conclusão, os dois casos relatados neste artigo demonstraram o grande potencial dessa tecnologia inovadora para o tratamento percutâneo da insuficiência valvar mitral, que deve conquistar grande espaço em nosso meio. No futuro próximo, assistiremos à introdução de outras tecnologias, incluindo dispositivos de anuloplastia e as próteses para implante transcateter, ampliando os horizontes da cardiologia intervencionista e beneficiando um número ainda maior de pacientes.
AgradecimentoAgradecemos o suporte técnico do Sr. Flávio Toledo (Abbott). Seu profundo conhecimento sobre o sistema MitraClip® contribuiu de forma importante para o sucesso destes procedimentos.
Fonte de financiamentoNão há.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
A revisão por pares é da responsabilidade Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista.