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Vol. 37. Núm. 4.
Páginas 353.e1-353.e4 (Abril 2018)
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Vol. 37. Núm. 4.
Páginas 353.e1-353.e4 (Abril 2018)
Caso Clínico
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Pericardite purulenta e Pasteurella multocida: uma associação raríssima
Purulenta pericarditis and Pasteurella multocida: an extremely rare entity
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Raquel Ferreiraa,
Autor para correspondência
ana_rakel_ferreira@hotmail.com

Autor para correspondência.
, José Martinsa,b,c,d, Tiago Adregaa, Sara Pintob, Sofia Nunesc, Rita Pancasd, Anabela Gonzagaa, José Santosa
a Serviço de Cardiologia, Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal
b Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal
c Serviço de Infeciologia, Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal
d Serviço de Cirurgia Cardiotorácica, Hospitais Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal
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Tabela 1. Caraterísticas do líquido pericárdico
Resumo

A pericardite purulenta é uma entidade rara, definida como a presença de derrame pericárdico neutrofílico infetado por um agente bacteriano, fungo ou parasita. O diagnóstico pode ser desafiante, especialmente se os doentes fizeram antibioterapia previamente; por outro lado, o reconhecimento dessa patologia é feito, muitas vezes, tardiamente, quando do aparecimento de sintomas graves ou sinais de tamponamento ou mesmo apenas na autópsia. Os autores descrevem o caso de uma mulher, 82 anos, com antecedentes de laceração extensa do membro inferior direito por mordedura de cão em julho de 2016, internada no Serviço de Cardiologia um mês depois por suspeita de pericardite aguda. Durante o internamento manteve picos febris recorrentes apesar da terapêutica com anti‐inflamatórios não esteroides e colchicina. Colheu rastreio sético e repetiu ecocardiograma, que revelou aumento do derrame pericárdico, sem sinais de compromisso hemodinâmico, e as hemoculturas revelaram a presença de Pasteurella multocida. Por suspeita clínica de pericardite purulenta fez pericardiocentese com drenagem de líquido compatível com exsudado e foi apresentada ao Serviço de Cirurgia Cardiotorácica para pericardiotomia e drenagem adequada do líquido purulento. O exame histológico confirmou o diagnóstico de pericardite aguda. De salientar que a Pasteurella é um agente muito frequente (50‐90%) no trato gastrointestinal e nasofaringe de muitos animais domésticos, nomeadamente cães.

Os autores realçam a necessidade de tratar agressivamente essa patologia, uma vez que se não tratada a morte é inevitável.

Palavras‐chave:
Pericardite purulenta
Pasteurella multocida
Abstract

Purulent pericarditis is a rare entity, defined as the presence of neutrophilic pericardial effusion which is infected by a bacterial, fungus or parasite agent. The diagnosis can be challenging, especially if patients have taken previous antibiotic therapy; on the other hand the recognition of this pathology is often made late, with the onset of severe symptoms or signs of cardiac tamponade or even only at the autopsy. The authors describe the case of a 82‐year‐old woman with history of extensive laceration of the right lower limb from a dog bite in July 2016, admitted to the Cardiology Department one month later for Acute Pericarditis. During hospitalization she maintained recurrent fever peaks despite the treatment with non‐steroidal anti‐inflammatory drugs and colchicine. She collected blood cultures and repeated echocardiogram showed increased pericardial effusion with no signs of hemodynamic compromise. Blood cultures revealed the presence of Pasteurella multocida. Due to clinical suspicion of purulent pericarditis, pericardiocentesis was performed with drainage of liquid compatible with exudate and the patient was presented to the Cardiothoracic Surgery Department for pericardiotomy and adequate drainage of the liquid. Histological examination confirmed the diagnosis of Acute Pericarditis. It should be noted that Pasteurella is a very frequent agent (50‐90%) in the gastrointestinal tract and nasopharynx of many domestic animals, namely dogs.

The authors emphasize the need to aggressively treat this pathology, since untreated death is inevitable.

Keywords:
Purulent pericarditis
Pasteurella multocida
Texto Completo
Caso clínico

Os autores descrevem o caso de uma mulher, 82 anos, com antecedentes de hipertensão arterial essencial, portadora de pacemaker de dupla câmara, hipotiroidismo, espondilodiscite em julho de 2015 por Enterococcus fecalis e laceração extensa do membro inferior direito após mordedura de cão, para a qual fez antibioterapia empírica com flucloxacilina em julho de 2016. Admitida na sala de emergência do nosso hospital em agosto do mesmo ano por dor torácica de caraterísticas pleuríticas e febre com 24‐48 horas de evolução. Ao exame objetivo destacava‐se a presença de atrito pericárdico à auscultação cardíaca, lesão herpética na região torácica posterior e temperatura febril (39C). O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal com elevação do segmento ST generalizada e esboço de infra PR (Figura 1). A avaliação analítica revelou leucocitose (16,20x10E9/L) com neutrofilia (90%), proteína C reativa elevada de 20,96mg/dL (intervalo de referência < 0,5), pró‐calcitonina também elevada 12,3 ng/mL (intervalo de referência < 0,1) e troponina I máxima 0,05 ng/mL (intervalo de referência < 0,04 ng/mL). A radiografia torácica não mostrou alterações significativas. O ecocardiograma inicial demonstrou boa função sistólica biventricular, sem alterações da contratibilidade segmentar, e a presença de derrame pericárdico ligeiro sem compromisso hemodinâmico; sem alterações valvulares significativas e sem achados sugestivos de síndrome aórtica aguda. Foi internada no Serviço de Cardiologia por suspeita de pericardite aguda.

Figura 1.

ECG de 12 derivações. Ritmo sinusal com elevação do segmento ST e esboço de infra do segmento PR.

(1MB).

Durante o internamento manteve picos febris apesar da terapêutica empírica com anti‐inflamatório não esteroide e colchicina, pelo que colheu rastreio séptico e iniciou antibioterapia empírica. Repetiu ecocardiograma, que revelou aumento do derrame pericárdico (severo) sem sinais eminentes de tamponamento cardíaco (Figuras 2 e 3). Por suspeita clínica de pericardite purulenta fez pericardiocentese com drenagem de 400ml de líquido seropurulento. A análise bioquímica do líquido foi compatível com a presença de um exsudado (pH 6,68; glicose 18mg/dL; relação glicose pericárdio/plasma 0,1; desidrogenase láctica 9.600 e a presença de > 1.000/mcL neutrófilos com predomínio de morfonucleares [Tabela 1]). As hemoculturas revelaram a presença de Pasteurella multocida, a antibioterapia foi ajustada para ceftriaxone após discussão do caso com o Serviço de Infeciologia e a doente foi apresentada ao Serviço de Cirurgia Cardiotorácica para pericardiotomia subfixoideia e drenagem pericárdica adequada. O exame microscópico correspondeu a pericárdio com proliferação fibroblástica e infiltrado neutrofílico em massas de fibrina aderentes, o diagnóstico histológico foi de pericardite aguda. A doente teve alta para ambulatório assintomática, orientada para a consulta externa e sem registo de novas admissões hospitalares até ao momento.

Figura 2.

Ecocardiograma transtorácico. Plano subcostal com derrame pericárdico severo circunferencial.

(0,07MB).
Figura 3.

Ecocardiograma transtorácico. Plano apical cinco câmaras com derrame pericárdico circunferencial com aspeto sugestivo de agregados de fibrina.

(0,09MB).
Tabela 1.

Caraterísticas do líquido pericárdico

Parâmetro  Valor 
pH  6,68 
Glicose  18,0mg/dL 
Proteínas totais  4,7mg/dL 
LDH  9600 U/L 
Adenosinadeaminase  2,853 
Contagem células  >1.000/mcL (polimorfonucleares) 
BK – Exame direto e PCR  Negativo 

BK, bacilo de Koch; LDH, desidrogenase lática; PCR, Polymerase Chain Reaction.

Revisão teórica

A pericardite purulenta (PP) é uma entidade rara (< 1% dos casos de pericardite), definida como a presença de derrame pericárdico neutrofílico infetado por um agente bacteriano, fungo ou parasita1.

Os agentes mais frequentes são o staphylococci, streptococci e pnemococci e as principais lesões associadas o empiema (50%) e a pneumonia (33%). Nos indivíduos imunodeprimidos ou após cirurgia torácica, o Staphylococcus aureus e os fungos são os mais comuns. A contaminação pode ocorrer por via hematogénica ou contaminação direta a partir do espaço retrofaríngeo, válvulas ou espaço subdiafragmático. O diagnóstico pode ser desafiante, especialmente se os doentes fizeram antibioterapia prévia à colheita de culturas; para além disso o diagnóstico é feito, muitas vezes, tardiamente, quando do aparecimento de sintomas graves ou sinais de tamponamento ou mesmo apenas na autópsia2–5.

A descompensação cardiovascular aguda (dispneia, taquicardia e hipotensão) ou quadro sético são as formas de apresentação mais frequentes. Curiosamente, também pode apresentar‐se de uma forma insidiosa sem sinais de envolvimento pericárdico até ao aparecimento de tamponamento cardíaco3–5.

A suspeita clínica de PP é indicação para pericardiocentese urgente. O diagnóstico é feito pela colheita de líquido pericárdico para exame bioquímico, citológico, microbiológico e exame microscópico direto. Um ratio glicose pericárdio/soro baixo (média 0,3) e a presença de elevada concentração de células brancas com predomínio de neutrófilos diferencia da pericardite tuberculosa (ratio glicose 0,7) e da neoplásica (ratio 0,8)3,4.

Antibioterapia endovenosa deve ser iniciada empiricamente até resultados microbiológicos disponíveis. Os derrames purulentos são muito frequentemente loculados e com rápida tendência para a acumulação. A drenagem do líquido pericárdico é, assim, crucial, devem ser consideradas a pericardiotomia subxifoideia (IIB) e a trombólise intrapericárdica (IIa) para casos de derrames loculados, com o objetivo de obter uma drenagem adequada, segundo as recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia. A pericardiectomia deve ser considerada no caso de existência de adesões densas, derrames loculados purulentos, recorrência de tamponamento e progressão para pericardite constritiva (PC) (IIa)3,4.

A PP deve ser tratada agressivamente, se não tratada a morte é inevitável3. Apesar da terapêutica médica agressiva, a mortalidade permanece alta (20‐30%). Pode evoluir para tamponamento cardíaco e choque sético; por outro lado, pode evoluir para pericardite constritiva e PP persistente. A pericardite constritiva é caraterizada pelo espessamento e pelas adesões pericárdicas, que levam à redução da compliance pericárdica e ao consequente compromisso hemodinâmico; a fibrose pericárdica é provocada pela inflamação subaguda/crónica que induz a proliferação dos fibroblastos e deposição do colagénio. A PP persistente é definida como a presença de derrame pericárdico crónica ou recorrente apesar da drenagem do líquido e antibioterapia adequada1,3,4.

Relativamente, a Pasteurella multocida é um bacilo Gram negativo presente no trato gastrointestinal e nasofaringe de muitos animais, cerca de 50% a 90% dos cães e gatos domésticos transportam espécies de Pasteurella na saliva e secreções nasais6.

Uma revisão da literatura dos últimos 30 anos revelou que ao longo dos anos ocorreram 20 a 30 mortes anuais em todo o mundo por infeção de Pasteurella. No entanto, essa taxa parece estar a aumentar e em quase todos os casos a morte parece associar‐se a uma complicação da infeção adquirida através da exposição animal. Entre as espécies de Pasteurella, Pasteurella multocida é o agente mais frequentemente encontrado, especialmente em casos que evoluem para quadros séticos graves7,8.

Sintomas comuns de infeção por Pasteurella nos humanos a partir de mordedura de animais variam desde edema, celulite ou drenagem purulenta a partir das lacerações da pele. Leucocitose e neutrofilia são muito frequentes e o quadro inflamatório pode evoluir rapidamente para quadros séticos fulminantes ou outras complicações graves, como osteomielite, endocardite e meningite7,8.

O tratamento antibiótico consiste, geralmente, na associação de amoxicilina e ácido clavulânico; doxiciclina e metronidazol para doentes com alergia à penicilina; clindamicina e uma fluoroquinolona ou ceftriaxone isolado. A incidência relativamente baixa de infeção por Pasteurella, apesar da alta prevalência de espécies de Pasteurella nos animais domésticos, apoia a ideia de que a Pasteurella é um patogéneo oportunista para os humanos. Relativamente à imunização ou vacinação contra infeção por Pasteurella, dada a baixa incidência de infeção humana tal como referido anteriormente, é feita através do controlo da doença do animal7,8.

Conclusão

A interação entre humanos e animais domésticos é pouco provável que venha a diminuir e a evidência sugere que infeção por Pasteurella multocida pode evoluir para casos séticos graves, com atingimento cardíaco. Os autores realçam a importância de reconhecer atempadamente as complicações dessa infeção, nomeadamente, neste caso, de pericardite purulenta, que se não tratada a morte seria inevitável.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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