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Inicio Acta Urológica Portuguesa Tratamento da litíase urinária por cálculos de cistina – Análise retrospec...
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Vol. 31. Issue 1 - 2.
Pages 2-7 (September 2014)
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Vol. 31. Issue 1 - 2.
Pages 2-7 (September 2014)
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Tratamento da litíase urinária por cálculos de cistina – Análise retrospectiva observacional
Treatment of cystine calculi - an observational retrospective review
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D. Casteloa,
Corresponding author
davidjscastelo@gmail.com

Autor de correspondência.
, E. Tavares da Silvaa, P. Moreirab, P. Simõesb, H. Dinisb, A. Figueiredoc, A. Motad
a Interno de Urologia, Serviço de Urologia e de Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal
b Assistente Hospitalar, Serviço de Urologia e de Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal
c Assistente Hospitalar Graduado, Serviço de Urologia e de Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Portugal
d Director de Serviço, Serviço de Urologia e de Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Portugal
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Tabela 1. Características demográficas dos doentes e terapêutica médica a que foram submetidos. RH - reforço hídrico e restrição de sódio na dieta; AU - alcalinização urinária com citrato de potássio e/ou citrato de sódio
Tabela 2. Número de procedimentos invasivos a que os doentes foram submetidos durante o período do estudo
Tabela 3. Evolução da função renal global e diferencial
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Resumo

Introdução: Os doentes com cistinúria e litíase urinária necessitam de múltiplos tratamentos, dada a dureza relativa destes cálculos e a natureza recidivante da doença.

Materiais e métodos: Os doentes submetidos a tratamento invasivo de cálculos urinários de cistina na nossa instituição entre janeiro de 2006 e março de 2013 foram analisados retrospectivamente. Consideraram-se nesta análise os tratamentos médicos e cirúrgicos e os resultados relativos a fragmentação / remoção completa dos cálculos e evolução da função renal.

Resultados: Entre janeiro de 2006 e março de 2013, 7 doentes foram submetidos a tratamentos invasivos na nossa instituição por litíase urinária cistinúrica. Destes doentes, 4 eram do sexo masculino e 3 do sexo feminino, com uma média de idade à data do último seguimento de 39 anos (mín = 19; máx = 59). A terapêutica médica consistiu em hidratação oral abundante (não quantificada), restrição de sódio na dieta e alcalinização da urina (todos os 7 doentes), captopril (6 doentes) e penicilamina (1 doente). Estes 7 doentes foram submetidos a um total de 156 procedimentos, com uma média de 22.3 procedimentos por doente no intervalo de tempo considerado. Todos os doentes realizaram litotrícia extracorpórea, com uma média de 20 tratamentos por doente (mín = 8; máx = 35). Os procedimentos cirúrgicos incluíram ureterorrenoscopia com litotrícia de contacto (9 tratamentos em 4 doentes; média = 2; mín = 1; máx = 4), nefrolitotomia percutânea (3 cirurgias em 3 doentes), pielolitotomia (2 cirurgias em 2 doentes; uma aberta e outra laparoscópica) e uma nefrectomia aberta (doente séptico e com rim não funcionante no momento do diagnóstico). Três doentes mantiveram-se sem litíase residual nos últimos 12 meses; todos foram submetidos a nefrolitotomia percutânea ou pielolitotomia. Três doentes foram submetidos a cintigrafias renais seriadas ao longo do período em estudo. Apesar das múltiplas intervenções, 2 doentes mantiveram a função renal global e diferencial estável ao longo de 6 anos e 1 doente ao longo de 2 anos de seguimento.

Conclusões: Na nossa série, foram necessários procedimentos cirúrgicos mais invasivos (nefrolitotomia percutânea ou pielolitotomia) para redução significativa ou para eliminação completa da carga litiásica. A terapêutica médica continuada ao longo do tempo e os procedimentos minimamente invasivos seriados, em especial a litotrícia extracorpórea, foram essenciais para prevenção da recidiva e tratamento da litíase residual. Apesar dos múltiplos procedimentos com potencial efeito deletério para a função renal, nos doentes analisados esta não foi afectada pela doença ou pelo seu tratamento agressivo ao longo de um intervalo de vários anos.

© 2014 Associação Portuguesa de Urologia. Publicado por Elsevier España, S.L.U. Todos os direitos reservados.

Palavras-Chave:
Cistinúria
Cistina
Litíase
Nefrolitotomia percutânea
Litotrícia extracorpórea por ondas de choque
Ureterorrenoscopia
Abstract

Introduction: Patients with cystinuria require multiple and varied treatments due to disease persistence and recurrence. In this study we analyzed therapeutic modalities and outcomes in the treatment of cystine calculi at a single academic center over the last 7years.

Materials and methods: We retrospectively analyzed patients undergoing invasive treatment of cystine calculi at our institution in the period between January 2006 and March 2013. Medical and surgical interventions and patient outcomes regarding stone-free status and renal function were considered.

Results: A total of 7 cystinuric patients were invasively treated in our institution over the period of 7years from January 2006 to March 2013. Of these 4 were male and 3 female with an average age at last follow-up of 39years (range 19-59). Treatment modalities included medical therapy with high fluid intake, sodium restriction and urine alkalinization (all 7 patients), captopril (6 patients), and penicillamine (1 patient). These patients underwent a total of 156 procedures, with an average of 22.3 procedures per patient. All patients underwent extracorporeal shockwave lithotripsy (SWL), with a mean of 20 sessions per patient, range 8-35). Other treatment modalities included ureterorenoscopy and intracorporeal lithotripsy; (9 procedures in 4 patients; mean = 2; range 1-4), percutaneous nephrolithotomy (PCNL); (3 procedures in 3 patients), pyelolithotomy (2 procedures in 2 patients; one laparoscopic and one open) and one open nephrectomy (sepsis due to an atrophic kidney at presentation). Three patients have been stone free for the last 12months; all have undergone PCNL or pyelolithotomy. Three patients have had serial renal scintigraphy; all maintained global and differential renal function over a period of 6years (2 patients) and 2years (1 patient) despite continued invasive procedures.

Conclusions: In our series, more invasive procedures (PCNL or pyelolithotmy) were required for debulking disease burden or achieving a stone-free status. Medical therapy and repeated minimally invasive procedures, especially SWL, were required for preventing recurrence and treating residual stones. Despite the frequent use of procedures with potential deleterious effect for the kidney, in our series renal function was not affected either by the disease or its aggressive treatment over a period of several years.

© 2014 Associação Portuguesa de Urologia. Published by Elsevier España, S.L.U. All rights reserved.

Keywords:
Cystinuria
Cystine
Lithiasis
Percutaneous nephrolithotomy
Extracorporeal shockwave lithotripsy
Ureterorenoscopy
Full Text
Introdução

A cistinúria é uma doença hereditária do transporte transmembranar dos aminoácidos dibásicos (cisteína, ornitina, lisina e arginina). A cistina é formada pela ligação de duas moléculas de cisteína através de uma ligação dissulfito. Ao contrário da cisteína e dos restantes aminoácidos dibásicos, que apresentam uma elevada solubilidade em meio aquoso, a cistina é relativamente insolúvel, precipitando com facilidade em pH < 71. A cistina foi inicialmente descrita por Wollaston em 1810, que descreveu dois cálculos vesicais de uma substância até aí desconhecida, que designou de óxido cístico, dada a topografia anatómica da sua descoberta2. Mais tarde, Berzelius demonstrou que essa substância não era um óxido e rebaptizou-a de cistina3.

Esta patologia tem uma prevalência global estimada de cerca de 1:7.000 a 1:20.000 e resulta de mutações no gene SLC3A1 (cromossoma 2-2p21) ou no gene SLC7A9 (cromossoma 19-19q12-13)1,4,5. Ambos codificam transportadores transmembranares de aminoácidos dibásicos, resultando destas mutações um défice na reabsorção desses aminoácidos no túbulo contornado proximal do rim. Desta forma, a excreção fraccional de cistina, que em condições fisiológicas é de cerca de 1%, pode aumentar para valores próximos de 100%6. Com a reabsorção de água que ocorre a nível tubular, é ultrapassado o ponto de solubilidade da cistina, estando reunidas as condições necessárias à formação de cálculos de cistina.

Clinicamente a litíase cistinúrica manifesta-se em idades mais precoces que os outros tipos de cálculos urinários, com a idade média do diagnóstico a situar-se na segunda e terceira décadas de vida7. O seu curso é mais agressivo que o da litíase cálcica e úrica, calculando-se que os doentes com cistinúria necessitem de mais do dobro dos procedimentos invasivos para fragmentação e remoção de cálculos que os doentes com litíase de outra natureza8.

Vários estudos mostram que os doentes com cistinúria apresentam uma degradação mais rápida da função renal que os doentes com outras formas de litíase urinária1. Além da obstrução e infecções urinárias secundárias à litíase, que por si só podem conduzir a deterioração da função renal ao longo do tempo, também a dificuldade na fragmentação e a elevada taxa de recidiva dos cálculos de cistina, obrigando a procedimentos invasivos seriados deletérios para a função renal, contribuem para este fenómeno. Apesar disso, a evolução para doença renal terminal é relativamente rara nos doentes com cistinúria1.

O tratamento e prevenção da recidiva da litíase por cálculos de cistina baseia-se no reforço da ingestão hídrica (> 3L/dia; incluindo pelo menos uma administração durante o período nocturno, interrompendo o sono para esse efeito), evicção de alimentos ricos em metionina e sódio, alcalinização da urina a pH > 7,5 e na utilização de fármacos que aumentam a solubilidade da cistina, como a tiopronina, a penicilamina e o captopril1,9. O tratamento cirúrgico de primeira linha actualmente recomendado consiste na ureteroscopia com litotrícia por LASER Holmium ou balística e na nefrolitotomia percutânea, de acordo com o tamanho e localização dos cálculos. A litotrícia extracorpórea por ondas de choque (LEOC) não é actualmente recomendada como terapêutica de primeira linha, pela relativa resistência dos cálculos de cistina a este procedimento9.

Neste trabalho procurámos analisar a terapêutica médica e cirúrgica actualmente adoptada na litíase urinária por cálculos de cistina, contabilizando o tipo e número de intervenções e avaliando a sua eficácia terapêutica (ausência de litíase renal) e a preservação da função renal.

Material e métodos

Procedeu-se a uma análise retrospectiva dos doentes com cistinúria e litíase urinária submetidos a procedimentos para fragmentação e remoção dos cálculos urinários na nossa instituição entre Janeiro de 2006 e março de 2013.

Além dos dados demográficos básicos dos doentes, foi registada a terapêutica médica e o número e natureza dos procedimentos a que foram submetidos para fragmentação e remoção dos cálculos. A maioria dos doentes foi seguida através de radiografias renovesicais e ecografias renais seriadas. Foram também realizadas TC abdomino-pélvicas basais em alguns dos doentes. Nenhum realizou este último exame de forma seriada.

Recolheu-se informação quanto à existência de litíase residual nos últimos 12 meses do período em estudo, considerando-se “stone-free” os doentes que ao longo desses 12 meses não apresentavam cálculos demonstráveis por exames de imagem.

A função renal foi avaliada a partir de cintigramas renais seriados, comparando-se a taxa de filtração glomerular e a função diferencial de cada rim entre e primeiro e o último cintigrama. Para melhor interpretação das variações ocorridas, registaram-se os procedimentos a que cada doente foi submetido nesse período.

Dado o pequeno número de doentes incluídos no estudo, apenas foram utilizadas técnicas elementares de estatística descritiva.

Resultados

Entre janeiro de 2006 e março de 2013 foram seguidos e tratados no nosso Serviço 7 doentes com cistinúria e litíase urinária. A média de idades (à data do final do estudo) foi de 39 anos, com uma distribuição equitativa entre géneros. Os dados demográficos destes doentes e a terapêutica médica a que foram submetidos são apresentados na tabela 1. Todos os doentes foram aconselhados a manter uma boa ingestão hídrica (> 2,5Litros por dia; distribuídos ao longo do dia) e restringir o consumo de sal na dieta, além de terem sido medicados com citrato de potássio / sódio (Uralyt-U® ou Acalka®). Seis doentes foram medicados também com captopril e apenas um com captopril e penicilamina.

Tabela 1.

Características demográficas dos doentes e terapêutica médica a que foram submetidos. RH - reforço hídrico e restrição de sódio na dieta; AU - alcalinização urinária com citrato de potássio e/ou citrato de sódio

Doente N.°  Idade  Sexo  Terapêutica Médica 
59  RH, AU 
35  RH, AU, Captopril 
36  RH, AU, Captopril 
29  RH, AU, Captoril, Penicilamina 
45  RH, AU, Captopril 
48  RH, AU, Captopril 
19  RH, AU, Captopril 

Os sete doentes incluídos foram submetidos a um total de 156 procedimentos para fragmentação / remoção dos cálculos urinários durante os cerca de 7 anos analisados (média = 22,3 procedimentos/doente; ou 2,8 procedimentos/doente/ano). A maioria destes tratamentos correspondeu a LEOC - tabela 2. Esta modalidade foi utilizada em todos os doentes analisados, com uma média de 20 tratamentos/doente (2,5 tratamentos/doente/ano). A LEOC foi efectuada por um litotritor electrohidráulico (EDAP TMS Sonolith Vision®) sob analgesia intramuscular com anti-inflamatório não esteróide e estímulo diurético com furosemida. Em casos seleccionados foi usado catéter uretérico duplo J, de acordo com o tamanho e localização do cálculo, segundo as linhas de orientação da Associação Europeia de Urologia vigentes à data do tratamento.

Tabela 2.

Número de procedimentos invasivos a que os doentes foram submetidos durante o período do estudo

Doente  LEOC  UR  Outros tratamentos  N.° Total de Procedimentos  Stone-Free 
23  23  Não 
18  Nefrectomia Esquerda  18  Não 
15  Pielolitotomia Aberta  19  Sim 
Pielolitotomia Laparoscópica  10  Sim 
21  Nefrolitotomia Percutânea  24  Não 
21  Nefrolitotomia Percutânea  26  Não 
35  Nefrolitotomia Percutânea  36  Sim 

O segundo tratamento mais frequente foi a ureterorrenoscopia com litotrícia de contacto (UR) - 9 procedimentos em 4 doentes (tabela 2). Esta foi a modalidade de escolha para fragmentação de cálculos uretéricos, cálculos residuais localizados no ureter após outras modalidades de tratamento ou steinstrasse. Foi utilizado um ureterorrenoscópio semi-rígido e litotrítor balístico em todos os doentes, na maioria dos casos com colocação de catéter uretérico duplo J após o procedimento para mais fácil eliminação dos microcálculos resultantes da fragmentação.

Três doentes foram submetidos a nefrolitotomia percutânea, dois doentes foram submetidos a pielolitotomia (uma por via laparoscópica e outra por via aberta); em doentes com cálculos coraliformes incompletos resistentes à LEOC.

Um dos doentes foi submetido a nefrectomia total urgente, por abordagem aberta. A apresentação inaugural da doença litiásica neste doente consistiu em urossépsis secundária a rim pielonefrítico, com função diferencial de 7%.

Não se verificaram complicações major decorrentes dos procedimentos realizados em nenhum doente.

Dos sete doentes deste estudo, 3 apresentavam-se sem litíase residual (“stone free”) ao longo dos últimos 12 meses de seguimento. Caracterizam-se por serem todos do sexo masculino, jovens (19-36 anos) e terem sido submetidos a procedimentos mais invasivos - pielolitotomia (doentes 3 e 4) ou nefrolitotomia percutânea (doente 7).

Foi possível avaliar a evolução da função renal em apenas 3 doentes; os restantes não apresentam cintigramas renais (ou outra forma fidedigna de avaliação da função renal) seriados, mesmo considerando exames realizados previamente ao início do estudo. Todos apresentam função renal estável ao longo de um período de 6 anos (2 doentes) e 2 anos (um doente); tendo sido submetidos a várias sessões de LEOC entre o cintigrama inicial e final - tabela 3. Nenhum destes doentes foi submetido a procedimentos cirúrgicos entre o cintigrama inicial e o final.

Tabela 3.

Evolução da função renal global e diferencial

Doente  TFG inicial Função diferencial  Procedimentos realizados  TFG final Função diferencial 
85mL/min 64 / 36%  11x LEOC  89mL/min 68 / 32% 
110mL/min 31 / 69%  3x LEOC  112mL/min 31 / 69% 
105mL/min 72 / 28%  28x LEOC  104mL/min 79 / 21% 
Discussão

O primeiro dado que se salienta da análise dos resultados é o baixo número de doentes deste estudo. Dada a prevalência estimada da cistinúria e a área de influência do nosso Hospital, e mesmo admitindo que apenas cerca de 50% dos doentes com cistinúria desenvolvem cálculos renais1,10, seria esperada uma prevalência mais elevada. A metodologia utilizada para inclusão no estudo - ter sido submetido a procedimentos invasivos para fragmentação / remoção dos cálculos durante o período considerado - poderá ter constituído um viés, na medida em que poderá ter seleccionado apenas os pacientes com doença mais agressiva.

A distribuição de doentes em termos de idade está de acordo com os dados classicamente descritos; sendo a média de idades manifestamente mais baixa que noutras situações de litíase1,7. A distribuição equitativa entre géneros é também a expectável nesta patologia, dado tratar-se de uma doença genética autossómica; ao contrário de outras formas de litíase urinária, nas quais diferenças endócrinas e metabólicas entre os géneros levam a uma prevalência três vezes superior no sexo masculino11.

A terapêutica médica, através do reforço da hidratação oral (superior a 3L por dia; incluindo a ingestão durante o período nocturno), restrição do aporte de sódio e alcalinização da urina com sais de citrato, é a base da prevenção primária e secundária desta doença1. Apesar de ter sido recomendada e relembrada regularmente a todos os doentes, salientando-se a sua importância, não nos é possível aferir a sua eficácia, por não ser fácil determinar a adesão dos doentes a estas medidas. No entanto, a literatura e a experiência clínica indicam-nos que a adesão ao reforço hídrico e a uma eficaz alcalinização da urina são tradicionalmente baixos12–14. A “aversão” à ingestão hídrica é um fenómeno bem conhecido em alguns desses doentes, seja por ausência de estímulo fisiológico, seja por incúria e/ou impossibilidade de se fazer acompanhar sempre de uma garrafa de água. Tendo em conta esses condicionalismos, reduziu-se a recomendação de ingestão diária de 3L/dia para 2,5L/dia. Além disso, o reforço hídrico, para ser eficaz, implica uma ingestão faseada e bem distribuída ao longo do dia e, no caso da cistinúria, também durante a noite, o que se torna pouco prático e cansativo a longo prazo. Uma dieta pobre em metionina pode, teoricamente, reduzir a excreção urinária de cistina, mas a adesão a esta dieta é também muito limitada, não fazendo parte das recomendações dadas a estes doentes na nossa instituição. A cistinúria tem mais potencial para formação de cálculos e a sua fragmentação é mais difícil quando comparada com a litíase cálcica e úrica, levando a maior necessidade de cuidados médicos e consequente sofrimento e perda de qualidade de vida por parte dos doentes cálculos de cistina. Tendo em conta estas considerações, desconhece-se se a adesão dos doentes com cistinúria a medidas simples como o reforço hídrico, restrição salina e alcalinização da urina é maior que a dos restantes formadores de cálculos urinários. Esta questão vai além dos objectivos do presente trabalho.

A penicilamina e o captopril são utilizados com o intuito de solubilizar a cistina, através da formação de complexos cistina-fármaco com elevada solubilidade em meio aquoso1. A penicilamina, apesar de mais eficaz, não é difusamente utilizada devido à sua elevada toxicidade (síndrome nefrótico, pancitopenia, intolerância gastro-intestinal, dermatite, nevrite óptica, fibrose pulmonar, miastenia gravis, etc.). O captopril é mais utilizado por ser melhor tolerado, mas na dose recomendada (150mg/dia) a sua eficácia é questionável, pois esta dose apenas será capaz de reagir com 10 a 50% da quantidade de cistina tipicamente excretada pelos doentes com cistinúria. Conjectura-se que o captopril poderá ter outro mecanismo de acção na cistinúria, mas desconhece-se qual possa ser1. Pela boa tolerabilidade do captopril e pela elevada incidência de hipertensão arterial na nossa população, foi este o fármaco de escolha na nossa série, ficando a penicilamina reservada para um doente com elevada recorrência da doença litiásica apesar da terapêutica com captopril. A tiopronina, actualmente recomendada como terapêutica farmacológica de primeira linha, não foi usada na nossa série pela sua baixa tolerabilidade, possibilidade de taquifilaxia precoce e ausência de experiência pessoal com o fármaco por parte da equipa médica1,9.

Os doentes incluídos neste trabalho foram submetidos a um elevado número de procedimentos para fragmentação e remoção dos cálculos. Ahmed et al, numa casuística de 8 anos de uma unidade terciária londrina dedicada à litíase, descrevem uma média de 7,9 procedimentos/paciente numa população semelhante5. Na nossa casuística o tratamento de primeira linha na maioria dos doentes foi a litotrícia extracorpórea por ondas de choque. Esta modalidade corresponde a 90% do total de procedimentos invasivos realizados. Os cálculos de cistina são relativamente refractários à LEOC, quando comparados com os cálculos cálcicos, levando à necessidade de tratamentos repetidos15,16. Na série de Ahmed, a LEOC foi utilizada em 84% dos doentes; associada a nefrolitotomia percutânea em 42% dos casos e à ureterorrenoscopia em 27%5. Há duas explicações alternativas não mutuamente exclusivas para explicar um maior número de procedimentos por doente nossa série. Por um lado, a decisão de avançar para terapêuticas mais invasivas que a LEOC poderá ter sido tomada mais tardiamente (após mais sessões de LEOC); por outro lado a fragmentação (por LEOC) de cálculos residuais após outros tratamentos poderá ter sido mais difícil. O número relativamente pequeno de nefrolitotomias percutâneas realizadas poderá ser explicado pela introdução desta técnica na nossa instituição durante o período analisado; não tendo sido uma opção terapêutica considerada em alguns doentes por não se encontrar disponível.

Caso estes doentes iniciassem o tratamento no momento actual, seriam provavelmente submetidos a nefrolitotomia percutânea ou a ureterorrenoscopia com litotrícia por LASER como procedimentos invasivos de primeira linha, de acordo com as linhas de orientação internacionais. Seria deste modo expectável uma maior taxa de sucesso com um menor número de procedimentos por doente, nomeadamente menos sessões de LEOC. Como já foi referido, os cálculos de cistina são relativamente resistentes à LEOC, pelo que esta modalidade terapêutica tem perdido indicações terapêuticas na cistinúria. A tecnologia actualmente existente permite a fragmentação de cálculos em praticamente todas as localizações no tracto urinário alto com a utilização de ureterorrenoscópios flexíveis e litotrícia por LASER. Por se tratar de uma técnica segura, pouco invasiva e com elevada taxa de sucesso, tem substituído muitas das indicações clássicas da LEOC na cistinúria, como a litíase recorrente e a litíase residual após outros procedimentos invasivos. A cirurgia laparoscópica pode estar indicada na litíase complexa com elevada carga litiásica e na falência ou contra-indicação de procedimentos minimamente invasivos. A cirurgia aberta tem indicações cada vez mais restritas, estando actualmente limitada à falência ou contra-indicação de outros procedimentos poucos invasivos e à necessidade de cirurgia aberta por outra patologia concomitante. Nos países desenvolvidos, em centros que dispõem das mais recentes técnicas endourológicas, a cirurgia aberta é cada vez mais a excepção no tratamento da litíase, sendo possível tratar quase todos os doentes recorrendo exclusivamente a técnicas menos invasivas9.

Dos 7 doentes estudados, apenas 3 se encontravam “stone-free” ao longo dos últimos 12 meses de seguimento. Têm em comum terem sido submetidos a procedimentos relativamente mais invasivos (nefrolitotomia percutânea ou pielolitotomia), de onde se infere a necessidade destes procedimentos para redução agressiva da carga litiásica (“debulking”) na obtenção deste status.

O efeito deletério na função renal de sessões repetidas de litotrícia extracorpórea é bem conhecido, embora os limites de tolerância do parênquima renal e a magnitude dessa perda de função não estejam estabelecidos. A onda de choque emitida pelo litotritor pode causar hematomas perirrenais, lesões vasculares intrarrenais e lesões da cápsula de Bowman, podócitos e células mesangiais, entre outras. Estas lesões podem evoluir com isquémia e fibrose do parênquima renal afectado, levando à perda de função em doentes submetidos repetidamente aos efeitos das ondas de choque no parênquima renal. A longo prazo, além do risco de insuficiência renal crónica, alguns estudos apontam também um risco acrescido de hipertensão arterial e diabetes mellitus em doentes submetidos a múltiplas sessões de LEOC. Dado o carácter multifactorial destas duas patologias e a sua elevada prevalência na população geral, é difícil avaliar a magnitude do risco atribuível à LEOC na sua etiologia17-19.

Contrariamente a estes dados, nos três doentes com quantificação seriada da função renal, esta não parece ser afectada pelas múltiplas sessões de LEOC. Com as devidas ressalvas dado o pequeno número de doentes estudados relativamente a este parâmetro e o seu curto seguimento, podemos afirmar que a litotrícia extracorpórea por ondas de choque, no aparelho e nas condições em que é realizada na nossa instituição, parece ser segura relativamente à preservação da função renal, pelo menos numa população eminentemente jovem como é o caso dos doentes com cistinúria.

Conclusões

A litíase renal por cálculos de cistina é uma doença de difícil tratamento e elevada taxa de recidiva. Na nossa série, foram necessários procedimentos cirúrgicos mais invasivos (nefrolitotomia percutânea ou pielolitotomia) para redução significativa ou para eliminação completa da carga litiásica. A terapêutica médica continuada ao longo do tempo e os procedimentos minimamente invasivos seriados, em especial a litotrícia extracorpórea, são essenciais para prevenção da recidiva e tratamento da litíase residual. Apesar dos múltiplos procedimentos com potencial efeito deletério na função renal, esta não pareceu ser afectada pela doença ou pelo seu tratamento agressivo ao longo de um intervalo de vários anos.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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